A Palavra de Deus é lâmpada para os pés dos cristãos, luz para o caminho. Esta certeza pode ser revisitada todas as vezes que se coloca a Bíblia como singular condutora e construtora da identidade cristã. A animação bíblica da vida e da Pastoral, o pilar da Palavra, estará na centralidade das discussões da 58ª Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), no próximo mês de abril. Confira o artigo de Sergio Centofanti e Silvonei José publicado em Vatican News com reflexões e indicações bíblicas sobre “A coragem de usar as palavras colocando a Palavra em prática”
Certamente, se nós cristãos observássemos mais a Palavra de Deus, isso mudaria muito o tom dos nossos debates. Por exemplo, como seriam os nossos comentários e nas nossas reflexões puséssemos em prática estas palavras de São Paulo?
“De vossa boca não saia nenhuma palavra maliciosa, mas somente palavras boas, capazes de edificar e de fazer bem aos ouvintes (…) Desapareça do meio de vós todo amargor e exaltação, toda ira e gritaria, ultrajes e toda espécie de maldade. Pelo contrário, sede bondosos e compassivos, uns para com os outros, perdoando-vos mutuamente, como Deus vos perdoou em Cristo”. (Carta aos Efésios 4, 29-32).
E ainda, começando pelas mídias sociais e mídias novas e antigas, sites e blogs, nós cristãos não damos um belo espetáculo. Para além do legítimo confronto, da crítica leal e da ironia simpática, quantas vezes vemos acusações maliciosas e desproporcionadas, zombarias, sarcasmos maliciosos, calúnias repetidas ao infinito (porque no fim permanece a lama mesmo com as desmentidas). Como este estilo mudaria se ouvíssemos a reprovação do Apóstolo dos Gentios?
“Pois toda a lei se resume neste único mandamento: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Mas se vos mordeis e vos devorais uns aos outros, cuidado para não serdes consumidos uns pelos outros! Eu vos exorto: deixai-vos sempre guiar pelo Espírito, e nunca satisfaçais o desejo da carne”. (Carta aos Gálatas 5, 14-16).
Se nós cristãos puséssemos em prática a Palavra de Deus, como mudaria o nosso mundo da comunicação? Talvez venderíamos menos, porque o mal faz audiência e vende melhor? Num antigo programa de televisão dedicado ao esporte, os presentes, de torcidas opostas, discutiam e insultavam-se fortemente … praguejavam-se e se insultavam reciprocamente. Tudo isto foi apenas um espectáculo para vender o programa. Eles não se importavam nada com os times idolatrados pelos torcedores. Nós cristãos realmente nos importamos com a Igreja, esse povo formado por pecadores, todos eles, que Deus quer salvar?
Claro que mesmo nós cristãos não estamos isentos de pecados autocelebrativos, narcisismo, egocentrismo, vaidade (o pecado favorito do diabo, diziamas últimas palavras de um filme bem conhecido). No centro dos nossos comentários, muitas vezes, estamos nós, há as nossas palavras, não a Palavra: nós crescemos e Jesus diminui. Tornamo-nos grandes como São Paulo que chamou de hipócrita São Pedro (somos todos São Paulo), tornamo-nos santos como Catarina de Sena que escrevia cartas de fogo ao Papa (mas ela o chamava de doce Cristo na terra), tornamo-nos grandes juízes, baseados na “ciência, competência e prestígio” (Can. Cic 212 §3), para acusar e condenar os “Pastores da Igreja”, fazemo-nos intérpretes de visões e profecias descodificando os mistérios das visões místicas, fazemo-nos enviados especiais do Senhor para redimir a Igreja das suas obscenidades. Nós nos fazemos grandes e talvez mereçamos a explosão de Jesus que nos pede para não desperdiçar palavras: “Este povo me honra com seus lábios, mas seu coração está longe de mim”. (Mt 15.8).
Como mudaria o tom das nossas reflexões se levássemos a sério esta famosa exortação de São Paulo? Até competir em estimar-se uns aos outros…
“O amor seja sincero. Detestai o mal, apegai-vos ao bem. Que o amor fraterno vos una uns aos outros, com terna afeição… Abençoai os que vos perseguem, abençoai e não amaldiçoeis… A ninguém pagueis o mal com o mal”. (Carta aos Romanos 12, 9-17).
Há a parrésia, digamos, a franqueza do falar. Sim, mas não há amor:
“Se eu falasse as línguas dos homens e as dos anjos, mas não tivesse amor, eu seria como um bronze que soa ou um címbalo que retine. Se eu tivesse o dom da profecia, se conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, se tivesse toda a fé, a ponto de remover montanhas, mas não tivesse amor, eu nada seria… O amor é paciente, é benfazejo; não é invejoso, não é presunçoso nem se incha de orgulho; não faz nada de vergonhoso, não é interesseiro, não se encoleriza, não leva em conta o mal sofrido; não se alegra com a injustiça, mas fica alegre com a verdade”. (Primeira Carta aos Coríntios 13, 1-2).
Tantas guerras têm sido travadas em nome da verdade, tanta violência. Isso não é suficiente para nós e continuamos com a violência verbal. Como mudaria a nossa linguagem se ouvíssemos São Pedro?
“Antes, declarai santo, em vossos corações, o Senhor Jesus Cristo e estai sempre prontos a dar a razão da vossa esperança a todo aquele que a pedir. Fazei-o, porém, com mansidão e respeito e com boa consciência” (Primeira Carta de São Pedro 3,15).
A atenção à linguagem está insistentemente presente na Bíblia, a partir do Antigo Testamento. Há uma mina de indicações:
Do Livro dos Provérbios: “Quem é insensato no falar se arruína” (10,8); “No muito falar não faltará o pecado, ao passo que é muito prudente quem modera os lábios.” (10,19); “Falastrão falando dá golpe de espada, a língua dos sábios produz a cura.” (12,18); “Quem guarda a própria boca preserva a vida; quem se descuida no falar causa a própria ruína.” (13,3); “ Uma resposta calma aplaca a ira, a palavra dura atiça o furor.” (15,1); “Língua pacificadora é árvore de vida; mas a ambigüidade quebranta o espírito.” (15,4); “Morte e vida estão no poder da língua; quem sabe usá-la comerá de seus frutos.” (18,21); “Não respondas ao insensato segundo a sua insensatez, para que não te faças semelhante a ele” (26,4).
Do Livro Eclesiástico: “Não litigues com o tagarela: não jogues lenha na sua fogueira.” (8,3); “É terrível, em sua cidade, o homem de língua solta; quem é temerário nas palavras será odiado.” (9,18); “antes do julgamento examina a ti mesmo” (18,20); “Na boca dos estultos está o seu coração, enquanto no coração dos sábios está sua boca.” (21,26); “Quando o ímpio maldiz o adversário, é a si mesmo que maldiz.” (21,27); “Com o boato, mancha sua alma e será odiado por todos; também quem permanecer com ele será odiado” (21,28); “Tua boca não se habitue a grosserias descontroladas, pois nelas sempre há pecado.” (23,13); “Quem se habituou a destratar os outros não se corrigirá pelo resto dos seus dias.” (23,15). Quando lemos estes textos, no final dizemos sempre: Palavra do Senhor.
As palavras são importantes: elas revelam o coração, disse Jesus. Seremos julgados sobre cada palavra:
“Quem é bom faz sair coisas boas de seu tesouro, que é bom. Mas quem é mau faz sair coisas más de seu tesouro, que é mau. Eu vos digo: de toda palavra vã que se proferir há de se prestar conta, no dia do juízo. Por causa das tuas palavras serás considerado justo; e por causa das tuas palavras serás condenado”. (Mt 12, 35-37).
Quando condenamos de uma maneira muito fácil, pensemos em Jesus que foi acusado de ser um blasfemador, um subversivo da tradição, um transgressor das leis divinas, até mesmo um endemoniado. Como as nossas palavras mudariam se ouvíssemos a Sua Palavra?
“Não julgueis, e não sereis julgados. Pois com o mesmo julgamento com que julgardes os outros sereis julgados; e a mesma medida que usardes para os outros servirá para vós. Por que observas o cisco no olho do teu irmão e não reparas na trave que está no teu próprio olho? (…) “Nem todo aquele que me diz: ‘Senhor! Senhor!’, entrará no Reino dos Céus, mas só aquele que põe em prática a vontade de meu Pai que está nos céus. Naquele dia, muitos vão me dizer: ‘Senhor, Senhor, não foi em teu nome que profetizamos? Não foi em teu nome que expulsamos demônios? E não foi em teu nome que fizemos muitos milagres?’ Então, eu lhes declararei: ‘Jamais vos conheci. Afastai-vos de mim, vós que praticais a iniquidade’. (Mt 7,1-23).
O risco que nós cristãos corremos é o de ler, escutar, escrever e dizer muitas palavras (inúteis) sem escutar mais a Palavra de Deus. Sem aquele silêncio que se coloca à escuta da única Palavra necessária, nossas palavras podem querer defender Deus, Jesus, Maria, os Papas, a Igreja, a doutrina católica, mas não são palavras cristãs. Sem este silêncio, aqueles que querem ver o mal, continuarão a vê-lo mesmo diante da coisa mais bela do mundo, também ali encontrará um detalhe, um pequeno defeito, uma pequena mancha escura, para dizer que tudo é podre. E vai convencer muitos de que é assim. Passamos tanto tempo no meio de conversas fiadas e perdemos a força da Palavra:
“Pois a palavra de Deus é viva, eficaz e mais penetrante que qualquer espada de dois gumes. Penetra até dividir alma e espírito, articulações e medulas. Julga os pensamentos e as intenções do coração. ” (Carta aos Hebreus 4, 12).
A questão permanece: nós cristãos, no uso das palavras, temos a coragem de pôr em prática a Palavra de Deus?
Fonte: CNBB